A história da cidade do Rio Grande e do futebol estão entrelaçadas. O município litorâneo do sul do Rio Grande do Sul é reconhecido por abrigar o clube de futebol mais antigo do Brasil, cujas atividades esportivas se mantém sem interrupção das suas atividades esportivas: o Sport Club Rio Grande. A data definida nacionalmente como o “Dia do Futebol”, inclusive, é no dia de fundação desta agremiação, 19 de julho. Cabe frisar, contudo, que nos seus primórdios o futebol era uma prática exclusivamente dos setores dominantes, que a partir de suas agremiações formavam uma verdadeira hierarquia no âmbito esportivo.
De toda forma, rapidamente o esporte bretão se massificou entre as demais camadas sociais, representando uma grande fonte de lazer das massas populares urbanas ainda na primeira metade do século XX. Com intuito de preservar o perfil social das suas agremiações e de selecionar as pessoas que poderiam praticar o esporte, os clubes de futebol vinculados às elites construíram mecanismo para barrar os clubes ligados às classes populares de acessarem as principais ligas de futebol. Na cidade do Rio Grande, foram utilizados parâmetros como a exigência de campos estruturados, pagamento de uma alta anuidade à entidade estadual e a exigência de os jogadores saberem ler e escrever. Ou seja, de maneira velada ou explícita, a liga oficial de futebol da cidade impedia a participação de trabalhadores, negros e analfabetos.
No entanto, longe de serem vítimas passivas, os trabalhadores são atores históricos influentes e não estão à revelia da dominação de classe, estabelecendo táticas e estratégias de resistência organizada. Nesse sentido, um dos artifícios mais utilizados pela classe trabalhadora ao longo da história foi o desenvolvimento de alguns tipos de associações próprias, que iam desde a defesa de interesses comuns e de determinada categoria, passando por aspectos de amparo, beneficência, lazer e cultura. O exemplo mais evidente dentro da localidade que esse breve texto se propõe analisar é a criação da Liga Sportiva Rio Branco, em 1926, formada por clubes vinculados ao meio operário e à comunidade negra rio-grandina, excluídos de forma sumária da principal entidade futebolística de Rio Grande.
O nome da liga é uma alusão à forma como a Lei do Ventre Livre ficou amplamente reconhecida, escancarando a influência que lutas do período escravista tiveram na formação das organizações no período da pós-abolição. Dentre os clubes que performaram nesta liga, destaca-se o Sport Club Cruzeiro, atrelado aos operários da Cervejaria Schmidt, que foi o principal expoente técnico entre as equipes filiadas, sagrando-se tricampeão do torneio. O Sport Club Rio Negro também tevedestaque dentro das quatro-linhas, além de ser o clube com maior identificação com a comunidade negra rio-grandina, contando no seu corpo diretivo com a figura de Carlos Santos, liderança negra e operária histórica da cidade.
Além de ser uma liga com uma base social predominantemente ligada aos setores populares e de segmentos variados da classe trabalhadora de Rio Grande, percebe-se que havia uma relação de proximidade com outras associações e entidades proletárias, a exemplo da Sociedade União Operária – maior entidade operária da cidade – e do clube carnavalesco Braço é Braço, organizado pelacomunidade negra local. Tal articulação favorecia laços de solidariedade e de congraçamento entre seus membros, ao mesmo tempo em que se formava uma identificação em comum, já que provinham de posições semelhantes na estrutura social.
Entretanto, a existência da Liga Rio Branco foi precocemente interrompida por um trágico acontecimento. Em 1930, na partida entre o S.C. Cruzeiro e o S.C. Internacional (que nada tem haver com o clube homônimo de Porto Alegre), uma briga generalizada entre torcedores e jogadores de ambas equipes resultou na morte de um operário que atuava no Cruzeiro. A questão foi amplamente repercutida pela imprensa da época, que exigiumedidas enérgicas das autoridades em relação ao acontecimento. Desde o fato, não foi possível encontrar mais registros sobre a liga, levando-nos a crer que ela foi extinta após esse triste episódio.
Dessa forma, mais do que evidenciar uma possível homogeneidade nas organizações dos trabalhadores rio-grandinos, mostra-se que é preciso estar atento às relações complexas que existiam nos laços estabelecidos por eles dentro e fora do ambiente laboral. Tratando-se especificamente sobre os clubes de futebol, um espaço majoritariamente composto por homens, acabava sendo um espaço fértil para que os valores ligados à honra masculina fossem validados frente ao segmento social do qual faziam parte. Sendo assim, são espaços de tensão e contradições, mas, ainda sim, de experiência de classe e de formação de identidade.
Crianças jogando bola na via férrea na década de 1910
Fonte: Acervo Biblioteca Rio-Grandenses
______________________________________________
Esse texto é de autoria do historiador Felipe Treviso Bresolin, Mestre e Doutorando em História pela UFRGS. Para conhecer mais sobre esse assunto, sugerimos a leitura do seu livro: https://drive.google.com/file/d/12ADtn4fnmOK0hTXziogVGRVK38LvrwlT/view
Comments