O processo de investigação não é nada linear e exige reflexões, autocríticas, (re)avaliações constantes. Pensando nisso, gostaria de dedicar esse espaço para compartilhar com vocês algumas questões que tenho pensado e que acredito que possam ser interessantes para a compreensão do principal objetivo do site e do projeto:
Sou rio-grandina. Nasci aqui na primavera de 1990 na maternindade da Santa Casa, sendo a primeira neta da minha família. Costumo dizer de que tive essa sorte, de ser rio-grandina (e também primeira neta), pois sou filha de uma paulista e de um carioca, que escolheram Rio Grande para morar. Foi aqui que aprendi a caminhar, a falar, realizei a maior parte da minha educação. Apesar de ter morado fora por algum tempo, esperava ansiosamente por voltar para essa terra. Sonhava com o momento do retorno, de cruzar essas ruas, o pórtico e me sentir novamente em casa (e isso já aconteceu muitas vezes).
Talvez por isso, por ter me formado socialmente, culturalmente e profissionalmente nessas terras ventosas e úmidas, sinto que o que o processo de pesquisa e de realização deste projeto está muito associado ao ser rio-grandina dos anos 1990. Apesar de neta de trabalhadores de fábricas, de ter sido por ocasião do trabalho no setor de fertilizantes, que o meu avô materno veio morar em Rio Grande, passei grande parte da minha vida não dando muita importância para esse fato.
Frente aos discursos oficiais históricos e patrimoniais de Rio Grande, parecia pouco atraente o fato de que meu avô era um "simples" trabalhador. Apesar de ter sido em decorrência desse trabalho, e também do que exerceu a minha avó, que a família melhorou suas condições financeiras e incentivou os estudos das gerações seguintes, o estigma e a desvalorização da classe trabalhadora, pairavam de forma sorrateira nas narrativas, ainda que de forma inconsciente e nem sempre perceptível. Afinal, o que há de interessante na história e na vida do trabalhador e da trabalhadora?(contém ironia)
Apesar de certa ironia e incoerência (com o que defendo hoje), fui nascida e criada em uma terra que nunca valorizou de forma adequada e decente a vida e a história do meu avô, da minha avó, e de outras milhares de pessoas que aqui nasceram ou vieram trabalhar. Em meio a esse cenário, fui também envolvida por um maior deslumbre e valorização daquilo que me diziam (de diferentes formas) que de fato era digno de ser valorizado, estudado e preservado, enfatizados pelos locais e grupos que frequentava.
É claro que a escolha da profissão, em paralelo a esse encantamento pela cidade e por sua história, não me afastaram por completo do sentimento de pertencimento e da representatividade desses patrimônios (que também envolvem questões de classe e privilégios de raça).
Entretanto, a invisibilidade e a desvalorização do patrimônio industrial que hoje busco desconstruir e reverter, também já morou em mim.
Aos poucos, conforme olhava para dentro e questionava de forma incessante o porquê das coisas (Por que Rio Grande é assim? Por que as coisas parecem não dar certo? Por que as pessoas sentem-se tão afastadas e desconectadas de Rio Grande? Por que não há um orgulho em ser rio-grandino?). É que fui abrindo espaço e olhando para o interno e o externo. Trata-se de um processo, de um descortinar janelas, portas, palcos que foram escondidos por fortes discursos e políticas de memória que também afetaram a mim e a minha família.
As coisas foram se esclarecendo, e, cada vez mais, fui entendendo melhor a cidade, e a mim, pois sou filha dessa terra e, e do meu tempo, e é por causa dela que dedico todos os dias da minha profissão e também da minha vida pessoal.
Ou seja, as camadas que parecem habitar a identidade e o imaginário local, e que relegam as vidas das pessoas trabalhadoras aos locais de coadjuvantes, ou às vezes nem isso, não isentam nem mesmo as pessoas que poderiam reconhecer esse valor. É uma regra? Não, mas facilmente percebemos que a desvalorização ainda é maior do que a valorização, embora seja muito positivo e esperançoso o fato de que algumas pessoas, grupos e famílias, já tenham superado e quebrado essas barrreiras, e estejam protagonizando a luta por essa valorização.
Por que falar sobre isso? Porque não é possível dissociar a pesquisa de quem a realiza. Por que tenho minha própria historicidade. Porque penso ser imprescindível trabalhar com a sinceridade e a ética, e nesse processo de caminho científico, busco questionar a mim mesmo e minhas escolhas. Isso perpassa pela aceitação do fato de que eu nem sempre fui assim, de que eu nem sempre reconheci a beleza e a importância de tudo que pesquiso e defendo hoje. De que não somos alheios aos discursos políticos, de memória e de patrimônio e que eles influenciam fortemente nosso imaginário, nossa identidade e nossa percepção de mundo, mesmo que isso não seja sempre percebido (assim como tantos outros aspectos).
Hoje consigo olhar e refletir sobre o passado da minha vida, da minha família e da minha cidade de forma muito conectada. Pode parecer óbvio agora (como que eu não pensei nisso antes?), mas assim como tantas outras coisas que tem o seu próprio tempo, penso que já é chegada a hora (mesmo que com 'atrasos') de olharmos para essas pessoas com o reconhecimento, protagonismo e importância que elas merecem. E não é apenas pelos meus avós (embora também seja), mas por todas as pessoas que ainda não receberam as devidas palmas e agradecimentos.
Busco plantar a sementinha que brotou em mim em cada uma das pessoas que encontro e converso sobre o projeto. E que essas histórias, memórias e narrativas familiares que por tanto tempo foram vistas como menos importantes, como motivo de vergonha, sejam ressignificadas. E que esse seja o primeiro passado da construção de uma nova cidade, de uma nova forma de se relacionar com o patrimônio, de uma nova posição no mundo social, político e econômico.
É pelo meu avô Almiro, pela minha avó Lazinha, e por todas as pessoas que trabalharam aqui e em outros cantos.
Muito obrigada, por tudo, e a vocês (vô e vó), um agradecimento especial por ter vindo para cá me fazer rio-grandina e formarem quem eu sou.
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